Descobri no ano 2003 ao escritor e jornalista Carlos Heitor Cony lendo as crônicas que publicava os domingos na Folha de São Paulo (ainda devem estar guardadas em alguma pasta com outros recortes amarelados) e esses textos breves e urgentes que "são como um fósforo que se acende e se apaga" me levaram atrás da sua literatura. "O ventre" (1958) seu primeiro romance, "Pilatos" (1974) uma historia surrealista e violenta e as suas memorias tituladas "Eu, aos pedaços". Neste livro o autor fala do golpe militar de 1964 e de suas crônicas publicadas no jornal O Correio da manhã. Me chamou atenção o título de uma em especial chamada "Revolução dos caranguejos", por isso compartilho com vocês (com a permissão do velho mestre) esta crônica valente, sagaz e demolidora, presságio dos Anos do chumbo.
CARLOS HEITOR CONY (Terça-Feira 14 de Abril de 1964)
Já que o Alto Comando Militar insiste em chamar isso que aí está de Revolução – sejamos generosos: aceitemos a classificação. Mas devemos completá-la: é uma Revolução, sim, mas de caranguejos. Revolução que anda para trás. Que ignora a época, a marcha da história, e tenta regredir ao governo Dutra, ou mais longe ainda, aos tempos da Velha República, quando a probidade dos velhacos era o esconderijo da incompetência e do servilismo. Quando até os vasos de nossos sanitários, as louças de nossos mictórios públicos tinham o consagrador made in England.
O Brasil foi para a frente, ganhou campeonatos do mundo, firmou uma presença industrial, subiu ao plano internacional – mas tudo isso é fruto do comunismo: há de regredir aos tempos da Baronesa, Leopoldina Railway, das tesourinhas Sollingen, do retrato do Santo Padre concedendo indulgências plenárias pendurado nas salas de visita.
Lembro o poema de Apollinaire sobre o caranguejo: “recuamos, recuamos”. E a sensação que predomina no País é esta: um recuo humilhante que deverá ser varrido muito mais cedo do que os medrosos e os imbecis pensam. Não se podia esperar caráter e patriotismo dos políticos: são coisas que a estrutura de um político não pode possuir, assim como a estrutura do concreto armado não pode possuir bolsões de ar. Mas dos militares – não há como negar, sente-se patriotismo e algum caráter. Um patriotismo adjetivado, sem substantivos, que se masturba com os gloriosos feitos históricos, feitos cada vez mais discutíveis. Um patriotismo estéril, que não leva a nada, que não constrói nada: lembro a patriotada do marechal Osvino mandando que os postos de gasolina hasteassem a bandeira nacional. É quase uma anedota, mas é típico da espécie deste patriotismo que rege nossas Forças Armadas.
Com algum caráter e algum patriotismo, é possível que os próprios militares compreendam o mau passo que estão dando, desmoralizando o Brasil perante o mundo inteiro, e, o que é pior, destruindo o que de melhor temos como Nação, e como povo: a vergonha.
Não se compreende que os militares, hoje no poder, em nome da ordem queiram impor tamanho retrocesso. Estúpida concepçã da ordem essa, a de que a ordem se basta a si mesma. A ordem só é válida quando conduz a alguma coisa: ordo ducit. Mas a ordem que os militares desejam é uma ordem calhorda, feita de regulamentos disciplinares do Exército e de estagnação moral e material.
Até agora, essa chamada Revolução não disse a que veio. As necessidades do País, que levaram o governo inábil do Sr. João Goulart a atrelar-se à linha chinesa do comunismo internacional, não receberam uma só palavra do Alto Comando. Falam em hierarquia, em disciplina, e consideram a Pátria salva porque os generais continuarão a receber continência e medalhas de tempo de serviço – à falta de condecorações mais bravas.
Sabemos que o governo deposto, se realmente enveredou o País para o caminho do caos, em parte tinha real cobertura dos anseios populares que o Sr. João Goulart não soube interpretar nem zelar. Esses anseios não desaparecerão porque o general Fulano depôs o general Sicrano. Afinal, o Brasil – já o disse aqui – não é um quartel de oito milhões de quilômetros quadrados. Quadrados são os que desejam fazer do País um prolongamento do quartel.
Sem medo, e com coerência, continuo afirmando: isso não é uma revolução. É uma quartelada continuada, sem nenhum pudor, sem sequer os disfarces legalistas que outrora mascaravam os pronunciamentos militares. É o tacão. É a espora. A força bruta. O coice.
Que os caranguejos continuem andando para trás. Nós andaremos para a frente, apesar dos descaminhos e das ameaças. Pois é na frente que encontraremos a nossa missão, o nosso destino. É na frente que está a nossa glória.
(14-04-1964)
Gostei muito Prof!! :)
ResponderEliminarGiovanna Araújo