martes, 16 de junio de 2015

Poema Sujo





En este texto (en portugués) el poeta brasileño Ferreira Gullar explica como fue el proceso de creación de su "Poema sujo". 



A história do poema 
Ferreira Gullar  



Escrevi o Poema sujo em 1975, em Buenos Aires, depois de anos de exílio em Moscou, Santiago do Chile e Lima. Se a primeira parte do exílio foi sofrida e atordoante (só me dei conta de que minha presença em Moscou era real seis meses depois de estar vivendo lá), a última parte — queda de Allende, reencontro traumatizante com a família no Peru — foi devastadora. Transferi-me em 1974 para Buenos Aires, cidade mais acolhedora e próxima do Brasil, mas, desgraçadamente, logo a situação política se agravou, desencadeando-se a repressão às esquerdas e aos exilados. À minha volta, os amigos começaram a ser presos ou fugir. Com o passaporte vencido, não poderia sair do país, a não ser para o Paraguai ou a Bolívia, dominados por ditaduras ferozes como a nossa. Enquanto isso, a cada manhã, novos cadáveres eram encontrados próximo ao aeroporto de Ezeiza, alguns deles destroçados a dinamite. Sabia-se que agentes da ditadura brasileira tinham permissão para entrar no país e capturar exilados políticos. Sentia-me dentro de um cerco que se fechava. Decidi, então, escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre.

Já fizera algumas tentativas de evocar, em forma de romance, os anos vividos em São Luís do Maranhão. Não conseguira ir além das setenta primeiras páginas, e o resultado não era bom. Insistia naquilo por acreditar que o tema não cabia num poema. Mas a gravidade e a urgência da situação não apenas mudavam minha relação com o passado como me impeliam para o meu meio natural de expressão — o poema. Não se tratava, porém, de simplesmente evocar a infância e a cidade distante. Queria resgatar a vida vivida (um modo talvez de sentir-me vivo), descer nos labirintos do tempo para talvez, quem sabe, encontrar amparo no solo afetivo da terra natal. Não queria fazer um discurso acerca do passado, mas torná-lo presente outra vez, matéria viva do poema, da fala, da existência atual. Por isso pensei usar de procedimento semelhante ao que adotara para escrever “O formigueiro”, em 1955. Semelhante mas essencialmente diverso: imaginei que poderia vomitar, em escrita automática (automatisme psychique), sem ordem discursiva, a massa da experiência vivida — lançar o passado em golfadas sobre o papel e, a partir desse magma, construir o poema que encerraria a minha aventura biográfica e literária.

Isso me ocorreu à noite, na cama, e, apesar do estado de excitação em que fiquei, preferi esperar a manhã seguinte para pôr em prática o projeto. E, de fato, mal me levantei, engoli qualquer coisa e logo me pus em frente à máquina de escrever: mas o “vômito” não vinha, e eu não sabia como provocá-lo. Como meter o dedo na garganta da linguagem se a linguagem não tem garganta? Fiquei desapontado; tudo o que imaginara à noite mostrava-se inviável à luz do dia. O poema final e extremo jamais seria escrito! Mas eu estava decidido a escrevê-lo e busquei o modo possível de fazê-lo, já que o que importava não era o modo, e sim o poema mesmo. “O poema deve começar antes de mim”, pensei, “começar antes do verbo.” E foi um alívio quando, calcando lentamente as teclas, pude escrever: 

turvo turvo 
a turva 
mão do sopro 
contra o muro

Encontrado o umbigo do poema, ele foi ganhando corpo. Escrevi cinco páginas e parei. Estava exausto e iluminado, sabia que uma ampla aventura se iniciava, penetrara enfim a dimensão onde se acumulara a riqueza incalculável e imprevisível do vivido. O fascinante é que toda essa riqueza que estava dentro de mim — e está dentro de todos — parecia agora acessível à expressão. E mais: tudo o que a constituía e que eu “sabia”, desde momentos mais intensos até os mais banais, das pessoas às coisas, das plantas aos bichos, tudo, água, lama, noite estrelada, fome, esperma, sonho, humilhações, tudo era agora matéria poética já que eu me tornara um Midas, capaz de transformar em poesia cada coisa em que tocasse.

De maio a agosto, vivi entregue ao poema. Sozinho, sem emprego, com um mínimo de obrigações, passava o dia mergulhado nele, no que já escrevera e no que pulsava em meu corpo, em minha mente, no ar, e que era o poema se fazendo, me usando para se fazer. Inquieto, hanté, saía para a rua e ficava andando pelos quarteirões próximos à avenida Honorio Pueyrredón, onde eu morava, ou nas vizinhanças da estação Caballito do metrô, o coração aos baques, a transformar em palavras e imagens a enxurrada de lembranças, sentimentos e ideias que, desencadeada, ameaçava sufocar-me. Em seguida voltava para casa e redigia as novas estrofes.

Em agosto, se não me equivoco, o poema, que até ali fluíra naturalmente, estancou de repente. A atmosfera quase mágica em que me movia desfez-se. A “viagem” terminara, o poema se dera por findo. Ainda insisti em prolongá-lo, escrevendo outras estrofes, que logo verifiquei descabidas e eliminei. Era impossível continuá-lo, mas, ao mesmo tempo, faltava concluí-lo, faltava um fecho, que eu não sabia qual era. Durante quase dois meses, deixei de pensar nele, ocupei- -me de outras coisas. Até que um dia, inesperadamente, comecei a murmurar:

O homem está na cidade 
como uma coisa está em outra

Hoje, quando releio essa última parte do Poema sujo, surpreendo- -me com a sua perfeita adequação ao resto do poema, ou seja, com o fato de ter produzido, sem perceber, a exata conclusão que ele exigia. 
Bem, o poema estava concluído. À parte qualquer juízo de valor, tinha noção de que, ao escrevê-lo, vivera uma experiência poética única, por sua longa duração e pelo estado especial em que o fizera, de extraordinária liberdade interior, que tornava atuais, presentes, todas as palavras, todos os cheiros, os sons, os afagos, as sensações experimentadas e as vozes ouvidas e lidas, da infância, da família, dos amores, dos poetas.

Guardei o poema. Apenas a Thereza, numa de suas idas a Buenos Aires, havia lido a parte inicial dele, antes da leitura feita por mim, a pedido do Vinicius de Moraes, na casa do Augusto Boal, para um grupo de amigos, quase todos exilados como eu. Após essa leitura, Vinicius, comovido, pediu-me uma cópia do poema, queria levá-lo para o Brasil. Finalmente, decidimos que seria melhor gravá-lo numa fita, o que foi feito já no dia seguinte. No Rio, Vinicius reuniu um grupo de amigos em sua casa para ouvir o poema. Nas circunstâncias, ouvi-lo dito por mim, poeta exilado, era certamente emocionante, e isso fez com que as cópias do poema se multiplicassem e outros grupos se formassem para escutá-lo. Sem demora, recebi do editor Ênio Silveira carta pedindo urgente uma cópia escrita do poema, porque ele queria editá-lo o mais rápido possível. De fato, poucos meses depois, o “Poema sujo” estava nas livrarias, suscitando a iniciativa de escritores, jornalistas e amigos para obter do governo militar a garantia de que eu pudesse voltar ao Brasil sem sofrer represálias. Só tomei conhecimento disso mais tarde, quando o processo já se desencadeara. Mantive-me neutro mas interessado no desfecho positivo dessas gestões que envolveram alguns cabeças da ditadura. A resposta foi não. Mas eu já estava cansado do exílio, com dois filhos doentes no Brasil e uma saudade insuportável. Voltei, fui levado para o doi-Codi, submetido a um interrogatório de 72 horas ininterruptas, acareações e ameaças (ameaçavam sequestrar um de meus filhos, internado numa clínica psiquiátrica). E eles sabiam tudo o que desejavam ouvir de mim. No final, explicaram: “foi pra você não pensar que podia voltar assim, de graça”. De qualquer modo, devo ao “Poema” sujo o fim antecipado do meu exílio. 

2 comentarios:

  1. Descubrí bastante tarde a Umbral pero aunque tarde me encantó y me encanta, la noche que llegué al cafe Gijon demuestra a un escritor claro sincero y sentimental

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    1. Maoka, recuerdo que "La noche que llegué al Café Gijón" hablaba de Madrid y de escritores y de un joven Umbral que había decidido desde los años sesenta conquistar esos dos mundos tan relacionados entre sí, al precio que fuese.

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