Revista Fatos e Fotos. Domingo 19 de Abril de 1969
Neruda, poético e político
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por Clarice Lispector
Cheguei
à porta do edifício de apartamentos onde mora Rubem Braga e onde Pablo Neruda e
sua esposa Matilde se hospedavam — cheguei à porta exatamente quando o carro
parava e retiravam a grande bagagem dos visitantes. O que fez Rubem dizer: “É
grande a bagagem literária do poeta”. Ao que o poeta retrucou: “Minha bagagem
literária deve pesar uns dois ou três quilos”.
Neruda
é extremamente simpático, sobretudo quando usa o seu boné (“tenho poucos
cabelos, mas muitos bonés”, disse). Não brinca porém em serviço: disse-me que
se me desse a entrevista naquela noite mesma só responderia a três perguntas,
mas se no dia seguinte de manhã eu quisesse falar com ele, responderia a maior
número. E pediu para ver as perguntas que eu iria fazer. Inteiramente sem
confiança em mim mesma, dei-lhe a página onde anotara as perguntas, esperando
Deus sabe o quê. Mas o quê foi um conforto. Disse-me que eram muito boas e que
me esperaria no dia seguinte. Saí com alívio no coração porque estava adiada a
minha timidez em fazer perguntas. Mas sou uma tímida ousada e é assim que tenho
vivido, o que, se me traz dissabores, tem-me trazido também alguma recompensa.
Quem sofre de timidez ousada entenderá o que quero dizer.
Antes
de reproduzir o diálogo, um breve esboço sobre sua carga literária. Publicou
“Crepusculário” quando tinha 19 anos. Um ano depois publicava “Vinte Poemas de
Amor e Uma Canção Desesperada”, que até hoje é gravado, reeditado, lido e
amado. Em seguida escreveu “Residência na Terra”, que reúne poemas de 1925 a
1931, da fase surrealista. “A Terceira Residência”, com poemas até 1945, é um
intermediário com uma parte da Espanha no coração, onde é chorada a morte de
Lorca, e a guerra civil que o tocou profundamente e despertou-o para os
problemas políticos e sociais. Em 1950, “Canto Geral”, tentativa de reunir
todos os problemas políticos, éticos e sociais da América Latina. Em 1954:
“Odes Elementares”, em que o estilo fica mais sóbrio, buscando simplicidade maior,
e onde se encontra, por exemplo, “Ode à cebola”. Em 1956, “Novas Odes
Elementares” que ele descobre nos temas elementares que não tinham sido
tocados. Em 1957, “Terceiro Livro das Odes”, continuando na mesma linha. A
partir de 1958, publica “Estravagario, Navegações e Regressos”, “Cem Sonetos de
Amor”, “Contos Cerimoniais” e “Memorial de Isla Negra”.
No
dia seguinte de manhã, fui vê-lo. Já havia respondido às minhas perguntas,
infelizmente: pois, a partir de uma resposta, é sempre ou quase sempre provocada
outra pergunta, às vezes aquela a que se queria chegar. As respostas eram
sucintas. Tão frustrador receber resposta curta a uma pergunta longa.
Contei-lhe sobre a minha timidez em pedir entrevistas, ao que ele respondeu:
“Que tolice”. Perguntei-lhe de qual de seus livros ele mais gostava e por quê.
Respondeu-me: “Tu sabes bem que tudo o que fazemos nos agrada porque somos nós
— tu e eu — que o fizemos”.
Você
se considera mais um poeta chileno ou da América Latina?
Poeta local do Chile, provinciano da
América Latina.
Escrever
melhora a angústia de viver?
Sim, naturalmente. Trabalhar em teu
ofício, se amas teu ofício, é celestial. Senão é infernal.
Quem
é Deus?
Todos algumas vezes. Nada, sempre.
Como
é que você descreve um ser humano o mais completo possível?
Político, poético. Físico.
Como
é uma mulher bonita para você?
Feita de muitas mulheres.
Escreva
aqui o seu poema predileto, pelo menos predileto neste exato momento?
Estou escrevendo. Você pode esperar por mim
dez anos?
Em
que lugar gostaria de viver, se não vivesse no Chile?
Acredite-me tolo ou patriótico, mas eu há
algum tempo escrevi em um poema: Se tivesse que nascer mil vezes. Ali quero
nascer. Se tivesse que morrer mil vezes. Ali quero morrer…
Qual
foi a maior alegria que teve pelo fato de escrever?
Ler minha poesia e ser ouvido em lugares
desolados: no deserto aos mineiros do norte do Chile, no Estreito de
Magalhães aos tosquiadores de ovelha, num galpão com cheiro de lã suja, suor
e solidão.
Em
você o que precede a criação, é a angústia ou um estado de graça?
Não conheço bem esses sentimentos. Mas não
me creia insensível.
Diga
alguma coisa que me surpreenda.
748. (E eu realmente surpreendi-me, não
esperava uma harmonia de números)
Você
está a par da poesia brasileira? Quem é que você prefere na nossa poesia?
Admiro Drummond, Vinícius, Jorge de Lima.
Não conheço os mais jovens e só chego a Paulo Mendes Campos e Geir Campos. O
poema que mais me agrada é o “Defunto”, de Pedra Nava. Sempre o leio em voz
alta aos meus amigos, em todos os lugares.
Que
acha da literatura engajada?
Toda literatura é engajada.
Qual
de seus livros você mais gosta?
O próximo.
A
que você atribui o fato de que os seus leitores acham você o “vulcão da América
Latina”?
Não sabia disso, talvez eles não conheçam
os vulcões.
Qual
é o seu poema mais recente?
“Fim do Mundo”. Trata do século 20.
Como
se processa em você a criação?
Com papel e tinta. Pelo menos essa é a
minha receita.
A
critica constrói?
Para os outros, não para o criador.
Você
já fez algum poema de encomenda? Se não o fez faça agora, mesmo que seja bem
curto.
Muitos. São os melhores. Este é um poema.
O
nome Neruda foi casual ou inspirado em Jan Neruda, poeta da liberdade tcheca?
Ninguém conseguiu até agora averiguá-lo.
Qual
é a coisa mais importante no mundo?
Tratar para que o mundo seja digno para
todas as vidas humanas, não só para algumas.
O
que é que você mais deseja para você mesmo como indivíduo?
Depende da hora do dia.
O
que é amor? Qualquer tipo de amor.
A melhor definição seria: o amor é o amor.
Você
já sofreu muito por amor?
Estou disposto a sofrer mais.
Quanto
tempo gostaria você de ficar no Brasil?
Um ano, mas depende de meus trabalhos.
E
assim terminou a entrevista com Pablo Neruda. Antes falasse ele mais. Eu
poderia prolongá-la quase que indefinidamente. Mas era a primeira entrevista
que ele dava no dia seguinte à sua chegada, e sei quanto uma entrevista pode
ser cansativa. Espontaneamente, deu-me um livro, “Cem Sonetos de Amor”. E
depois de meu nome, na dedicatória, escreveu: “De seu amigo Pablo”. Eu também
sinto que ele poderia se tornar meu amigo, se as circunstâncias facilitassem.
Na contracapa do livro diz: “Um todo manifestado com uma espécie de
sensualidade casta e pagã: o amor como uma vocação do homem e a poesia como
sua tarefa”. Eis um retrato de corpo inteiro de Pablo Neruda nestas últimas
frases.
A entrevista foi concedida em 19 de abril
de 1969
e publicada no livro “De Corpo Inteiro”, Editora Rocco, em 1999
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